
Juros, inflação e Mais Habitação: qual o impacto na venda de casas?
Somam-se cada vez mais desafios aos negócios imobiliários. Primeiro a pandemia, depois a alta inflação e a subida dos juros no crédito habitação. E, mais recentemente, a crise financeira decorrente da falência dos bancos nos EUA, a que acresce o polémico Mais Habitação, que muito tem inquietado o mercado. Mesmo perante este cenário, o setor imobiliário tem resistido de boa saúde: as expectativas de negócios das casas estão em alta para 2023. Mas é verdade que a procura vai-se adaptando, com as famílias de classe média de olho em casas mais baratas e em terrenos. E as famílias de classe alta a retraírem as transações devido à instabilidade que o programa Mais Habitação trouxe ao mercado, segundo explicam os especialistas.
Venda de casas 2023: expectativas em alta, apesar da incerteza atual
Mesmo num contexto de incerteza económica e financeira, as famílias continuam a comprar casa em Portugal. Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelaram que nunca foram vendidas tantas habitações como em 2022, tendo sido registado o recorde de 167.900 transações. E foram as famílias portuguesas as responsáveis pela esmagadora maioria dos negócios (93,6% do total), embora os estrangeiros estejam cada vez mais ativos na aquisição de habitações no nosso país e paguem mais caro pelos imóveis.

Os especialistas em mediação imobiliária acreditam que a venda de casas vai continuar dinâmica ao longo de 2023. Mas não negam que também haverá desafios à espreita derivados do atual contexto marcado pela alta inflação, subida dos juros no crédito habitação, a instabilidade dos mercados financeiros e ainda as medidas que constam no programa Mais Habitação.

Procura de casas em Portugal está a adaptar-se: como?
Tudo indica que o negócio das casas continua a fluir em 2023, apesar de se estarem a somar cada vez mais fatores que aumentam os níveis de incerteza e minam a confiança do mercado. Mas nem tudo continua igual. A procura de casas para comprar por parte da classe média, média-baixa, tem-se vindo adaptar de diversas formas ao atual contexto marcado pela alta inflação, subida de juros e instabilidade financeira, tal como explicam os especialistas.
- Procura de casas a preços mais baixos (devido à subida dos juros): “Há famílias que quando começaram a procurar casa tinham o sonho de comprar uma casa de 200 ou 300 mil euros, mas quando recorrem ao crédito – devido à subida dos juros e às restrições na concessão dos empréstimos – não conseguem obter um crédito tão elevado, pelo que o sonho de ter uma casa de 200 ou 300 mil euros baixa um pouco”;
- Procura de casas abranda: “No ano passado quando aparecia um imóvel com ‘preço normal’ de mercado, nós tínhamos quatro ou cinco compradores. Mas, neste momento, já não há tanta procura para comprar imóveis ao ‘preço normal’, passando a haver um ou dois interessados por ativo. Demora algum tempo a fazer as primeiras visitas”;
- Maior procura por terrenos: “O que nós sentimos mais por parte da classe média baixa é procura por terrenos. Os terrenos rústicos que no passado não tinham assim tão grande procura, neste momento tem grande procura pelas opções que há hoje no mercado das casas pré-fabricadas e das casas de madeira”;
- Procura de casas nas zonas periféricas (também no Grande Porto): “Fazendo os ajustes dos sonhos ou das realidades, as famílias percebem que não têm a possibilidade comprar uma casa tão bem localizada [como dentro do Porto, onde o metro quadrado é mais caro] e começam a preferir as periferias. Porque o Porto e Matosinhos estão a ficar cheios e as pessoas preferem, muitas vezes, andar 10, 15 ou 20 minutos e ter uma casa maior. Até porque no Porto temos uma linha de metro que já chega quase todo o lado e isso torna-se numa vantagem”.

Tendências da pandemia na procura de casas continuam a sentir-se
Há ainda tendências na procura de casas que surgiram durante a pandemia e ainda hoje se sentem no mercado imobiliário, tal como recordam os profissionais auscultados:
- Casas com jardim: antes, na hora de comprar casa as famílias davam especial peso à localização e menos aos espaços exteriores. “Mas a pandemia veio alterar o paradigma: hoje em dia, a localização é importante, mas que já não é tão importante. O que é mais importante é terem jardim, janelas, boa exposição solar…”;
- Casas mais espaçosas e funcionais: é uma tendência que também “veio para ficar”.
- Casas em zonas de campo (com foco para o Alentejo): “O Alentejo tem tido uma procura enorme, sobretudo mais no interior, como Évora e Beja. Até porque no Alentejo ainda se conseguem arranjar casas a bom preço. E eu acho que é um fenómeno que tem a ver um pouco ainda da pandemia da Covid-19. Isto é, as pessoas continuam a fugir dos grandes centros de forma viverem em espaços menos populacionais”.

Venda de casas desacelera no mercado de luxo – Mais Habitação eleva incerteza
A alta inflação, a subida dos juros e até a recente crise financeira têm especial influência no segmento médio de mercado, já que geralmente recorre à banca para obter financiamento para a compra de casa. Já o mercado de luxo não sente os efeitos do atual contexto da mesma forma: “A classe média alta e alta está à vontade, porque normalmente não recorre à banca. Acho que vamos ter algum problema na classe média baixa e na baixa, mas a classe média alta e na alta não vejo que vá ter alguma implicação na quebra de vendas”.
A “grande mudança” que se sentiu no final de 2022 e agora em 2023 é que os investidores deixaram de ser tão impulsivos na compra de casa. “Neste momento retraem-se, ou seja, analisam melhor, enquanto antigamente faziam uma compra um pouco mais por impulso”.
A verdade é que o segmento mais alto não é imune ao atual contexto económico. A instabilidade que o programa Mais Habitação trouxe nas últimas semanas retraiu os negócios dos investidores. “Este mês tivemos uma série de desistências de investidores por causa das notícias relacionadas com o programa Mais Habitação, sobretudo, no que diz respeito ao arrendamento coercivo. Ou seja, pessoas de classe média aforradora, que estão habituados a comprar ações, e querem comprar um apartamento para arrendar, ficaram assustadas e não estão disponíveis para comprar neste momento”, até porque as medidas foram colocadas em cima da mesa “sem explicação nenhuma”.
Embora ainda não seja conhecida a versão final do Mais Habitação – e ainda tenha de passar pelo crivo do Presidente da República que admite vetar medidas ou enviá-las para o Tribunal Constitucional – só a ideia de o implementar “já causou um mal ao mercado e já retraiu a procura”. A medida tem gerado especial preocupação no mercado, porque, afinal, o Estado quer por estas casas a arrendar a um preço por si estabelecido “tendencialmente baixo, porque não é para ricos”.
“Se for implementado, vai desagradar a muita gente, vai desagradar a construtores que não terão vontade de construir” e a investidores que não terão vontade de investir. Isto porque “os investidores em geral e os construtores têm de saber o que é que esperam, têm de ter estabilidade legislativa, até porque o processo de construção, entre a compra do terreno e a venda dos apartamentos, demora anos. Se as pessoas não se sentirem seguras, vão fazer outra coisa”.

Qual o impacto do Mais Habitação no mercado residencial português?
O programa Mais Habitação – que esteve em consulta pública até à passada sexta-feira, dia 24 de março, contando com 2.700 contributos – tem recebido uma chuva de críticas pelos vários profissionais do mercado imobiliário (e não só). Recentemente até o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, comparou as medidas às leis cartazes, considerando-as “inoperacionais e inexequíveis”.
Também os profissionais contactados não veem a generalidade das medidas do Mais Habitação com bons olhos, deixando críticas às questões que mais têm causado polémica:
- Alojamento Local (AL): as novas restrições ao AL – que passam, por exemplo, pela suspensão de novas licenças até 2030 (à exceção das zonas rurais), dar mais poderes aos condomínios para cancelar registos de AL e agravar o IMI aos AL que se situem em prédios antigos – têm como objetivo mobilizar as casas do mercado de alojamento de curta duração para o mercado de arrendamento. Mas, para os especialistas, “já é tarde demais”, num momento em que o AL já se expandiu por todo o país e no Algarve é “uma loucura”. “As licenças podem obviamente ser retiradas, mas a partir do momento em que um condomínio autoriza que seja feito um AL, vai ser difícil ver o mesmo condomínio a dizer que afinal já não é possível ter lá o AL”, argumentou;
- Arrendamento obrigatório de casas devolutas: “O que o Governo quer fazer no Mais Habitação à custa dos donos dos imóveis não faz sentido nenhum, até porque quem tem mais imóveis devolutos neste país é o Estado e, por isso, deviam começar por dar o exemplo”.
- Simplificação de licenciamentos: “Se o processo de licenciamento passar a ser mais rápido, vai ser ótimo”, acreditam os especialistas. Para que a agilização dos licenciamentos seja positiva é “preciso que haja mais locais para construir”, mas nesse momento na generalidade dos municípios portugueses ainda estão em vigor os Planos Diretores Municipais (PDM) desenhados em 1995, estando, por isso, “completamente fora da realidade”. “O que é que importa tornar mais fácil [os licenciamentos] se não há espaços onde se possa construir?”.
- Fim dos vistos gold: “O fim dos vistos gold foi outro erro enorme, porque as pessoas que compravam imóveis acima de 500.000 euros não compravam os imóveis das famílias de classe média, nem de classe média baixa. Portanto, muito dinheiro estrangeiro deixou de entrar, que podia servir o país (…) foi um erro enorme deixar de atrair ricos ainda por cima quando outros países mantém o programa, como Espanha”.

Quais são as medidas que podiam ajudar a colocar mais casas no mercado?
Para que ajudar a fomentar a oferta de casas no mercado serão necessárias outras medidas, segundo os profissionais, que passam pela agilização dos Planos Diretores Municipais, pelo agravamento fiscal de casas vazias e ainda pela cedência de terrenos para construção para a classe média e também para a alta, por exemplo.
Agilização dos Planos Diretores Municipais
Para os especialistas, “a medida que podia fazer a diferença era obrigar, o quanto antes, que cada câmara do país colocasse o PDM de nova geração na rua. Até porque o PDM nova geração traz uma realidade diferente. Neste momento há quatro tipos de terrenos e com o PDM nova geração passa a haver só dois tipos de terrenos, que é o rústico e o urbano, sendo que dentro do rústico há a possibilidade de se construir bastando que para tal a Câmara e a CCDR que cada distrito o autorizar”.
Só depois de os PDM entrarem em vigor em 2023 é que serão conhecidos novos espaços onde possa “haver construção nova e, eventualmente, haverá a descida do preço das casas usadas”, acredita o responsável, explicando que ao haver mais casas novas que “são mais apetecíveis”, o preço das casas usadas “deverá baixar”.
Agravamento de impostos para casas vazias
Na perspetiva do responsável pela Casa da Portela deveria haver um agravamento fiscal nas casas vazias e não o arrendamento coercivo que o Governo inclui no programa Mais Habitação. “O agravamento fiscal acaba por mobilizar a ação. Tem de se criar um imposto, que vai subindo anualmente por cada ano que a pessoa tem o imóvel vazio”, tal como foi feito em Berlim, na Alemanha, onde ao quinto ano com uma casa vazia, o proprietário já paga 5% de imposto por inutilização.
Aliás, esta medida de agravamento fiscal “não devia ser só com os imóveis, devia ser com todos os bens, porque o direito à propriedade privada não pode contrariar o direito que todos temos do uso dessa propriedade”. “Por exemplo, imagine-se que uma pessoa era dona de todos os campos de milho em Portugal. Essa pessoa não pode ter o direito de não os cultivar, porque vai fazer os outros passar fome. O mesmo se passa com os casas: por ser proprietário das casas, não posso ter o direito de não as usar. Agora, o que é que se pode fazer? É cobrar impostos sobre isso”, conclui.

Cedência de terrenos públicos para construção de casas acessíveis (e não só)
O pacote Mais Habitação inclui uma medida que visa disponibilizar terrenos e edifícios a cooperativas e privados para construção de habitação acessível. E o Governo avançou ainda que vai lançar dois concursos para construir 350 casas modulares. Até aqui tudo bem. Mas questionam-se os moldes em que esta cedência de terrenos poderá ser feita e acredita, uma vez mais, que o Governo deveria seguir o exemplo da capital alemã.
“Em Berlim, o Estado cedeu terrenos e os promotores puderam fazer, com bonificações, prédios para pessoas com baixa renda e, ao lado, prédios para pessoas de classe média ou média alta. Ou seja, avançaram com construções concertadas e interessantes para todas as partes, criando habitação de baixo custo, que muita gente precisava, e ao mesmo tempo os promotores não perderam dinheiro, podendo também construir para outro tipo de clientes de segmento mais alto. E tudo isto utilizando um terreno público que não estava a ter uso nenhum”.
Criar benefícios para arrendamento a famílias vulneráveis
No sentido de promover a confiança dos proprietários que colocam casas no mercado de arrendamento, o acreditam que “deveria haver também benefícios fiscais para senhorios que arrendam a pessoas mais frágeis, nomeadamente a alguém tem um filho doente ou alguém que tem mais de 65 anos, por exemplo. Estes proprietários não deveriam pagar impostos”, defende.
Descida generalizada de impostos – das mais-valias à isenção do IVA
“No Grande Porto, os imóveis que têm venda rápida são imóveis que a maior parte das pessoas não pode comprar – zonas premium, junto ao mar, com qualidade superior. Não se estão a construir imóveis mais baratos por várias razões: o custo de produção aumentou muito no último ano e porque realmente não existem políticas do Estado para ajudar a que isso aconteça, nomeadamente isenções fiscais”, defendem.
Para haver mais construção para o segmento médio, o especialista considera que é preciso haver cedência de terrenos do Estado e baixar impostos. “Um dos problemas são as mais-valias que as pessoas pagam ao vender um terreno. Se os terrenos privados tivesse uma carga de impostos na venda mais baixa, podiam ser vendidos por preços muito mais baratos”.
“Da maneira que isto está é difícil que alguém construa para pessoas com mais necessidades, ou seja, o problema social vai-se manter. Aliás, eu diria que 80% – ou mais – da população de classe média baixa, média e até média-alta tem dificuldade em comprar casa. E, portanto, tem de haver uma intervenção do Estado via impostos, como as isenções de IVA na construção. E também algum controlo sobre a especulação, ou seja, se o Estado tomar medidas tem de controlar se efetivamente chegam ao cliente final ou não – senão sobem só as margens e fica tudo igual”, conclui o responsável.

Fonte: https://www.idealista.pt/news/imobiliario/habitacao/2023/03/29/57306-juros-inflacao-e-mais-habitacao-qual-o-impacto-na-venda-de-casas